O sentido está no corpo: sobre roupas e a performance de gênero
- Comunicação e Marketing
- 11 de nov.
- 3 min de leitura
Por: Bruno Zicman
Uma camiseta, por mais simples que seja, carrega uma rede de sentidos: cor, corte, tecido e estampas moldam a forma como se apresenta — confortável, justa, formal ou casual. Mas talvez o primeiro traço que salta aos olhos seja o gênero que ela parece anunciar: feminina ou masculina. Imagine uma camiseta de malha roxa, com ombros estreitos, levemente acinturada, gola em “v” e delicados bordados de renda na mesma cor. Em uma loja de departamentos, ou em um bazar, ela será naturalmente colocada na seção feminina. Quando vestida por um corpo feminino, parece pertencer ali, coesa e certa. Mas o que realmente faz essa camiseta ser percebida como feminina? Não é o tecido, nem a cor, nem os detalhes: é o olhar que a interpreta. As roupas não nascem femininas ou masculinas — elas se tornam uma ou outra à medida que se inscrevem em corpos, gestos e expectativas sociais. Como lembra Judith Butler, o gênero é menos uma essência e mais uma repetição contínua: formas, cores e modos de vestir reiterados produzem a ilusão de uma identidade estável. Esse sentido, essa “estabilidade”, existe nos corpos e nos olhares que os observam, não nas roupas em si.

Ao performar o gênero — muitas vezes pela aparência e pelo modo de se vestir — há sempre uma comparação silenciosa: é adequado ou subversivo? Voltando à camiseta roxa, ela pode ser vista como uma extensão do corpo feminino, mas, vestida por um corpo masculino, pode soar destoante, fora do esperado. Como aponta Joanne Entwistle em The Fashioned Body, vestir-se é também produzir um corpo e uma identidade. As roupas ajudam a diferenciar o feminino do masculino, e o corpo se torna um projeto social onde essa distinção se realiza. Em diferentes contextos, peças quase idênticas podem carregar histórias e sentidos completamente divergentes. Tome-se como exemplo a capa da Rolling Stone de 1999, protagonizada por Brad Pitt — à época, um dos rostos mais representativos da masculinidade hollywoodiana. No ensaio, o ator aparece usando vestidos, roupas de paetê e brincos de argola. Apesar dos brilhos e dos tecidos tradicionalmente associados ao feminino, sua postura permanece marcada por gestos de virilidade: braços flexionados, expressão firme e dedos em forma de arma. A força da imagem está nesse contraste — um corpo masculino vestido de feminilidade, sem, no entanto, abdicar de sua masculinidade. O resultado foi visto como algo ousado, quase transgressor.

Hoje, há inúmeras leituras que reconhecem a importância simbólica desse ensaio, sobretudo por propor outras formas de pensar o masculino. Ainda assim, chama atenção o fato de que a ruptura parece depender do corpo que a encena. É o corpo que dá sentido à roupa — e não o contrário. Se o mesmo figurino fosse usado por uma mulher, a imagem dificilmente seria vista como provocativa; pareceria apenas natural.

Notadamente, entre corpos queer, a mesma transgressão é antiga. Há décadas, a desconformidade com as normas de gênero se expressa na roupa — não necessariamente como editorial de moda, mas como existência cotidiana. A diferença é que, quando encenada por alguém como Brad Pitt, essa experimentação é celebrada como arte disruptiva; quando vem de uma drag queen ou de um corpo dissidente, é tratada como subversão. Tratado como aquilo que degrada o estatuto maciço de gênero. O gesto é o mesmo, possivelmente, as roupas poderiam ser as mesmas também, mas os olhos que o recebem são diferentes. As roupas, afinal, não mudam — o que muda é quem as veste, e o que o mundo decide ver nesse corpo.

Talvez o vestir seja, antes de tudo, um ato de tradução. Cada roupa, ao tocar um corpo, traduz normas, histórias e expectativas — mas também abre brechas. No tecido entre o corpo e o olhar, entre o que se espera e o que se vê, a moda revela sua força política: a de questionar o que parece natural. E é nesse pequeno espaço de fricção, entre o botão que se fecha e o olhar que se desvia, que o gênero se mostra menos como essência e mais como invenção.
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