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Luxo e o Corpo Humano: Um Ensaio

  • Comunicação e Marketing
  • 25 de nov.
  • 4 min de leitura

Por: Bruno Zicman


Uma bolsa feita com a pele de um animal próximo da extinção, acessórios de ouro e diamantes ou mesmo um perfume extraído do aroma de uma flor que se abre apenas uma vez a cada dez anos. Entre nós, consumidores, há um consenso bastante estabelecido sobre o que configura um artigo de luxo. Palidez, fartura ou mesmo exotismo foram considerados, ao longo da história, marcadores desse universo — todos ligados por um ponto em comum: a exclusividade e o difícil acesso. Se o ordinário para o trabalhador do campo na década de 1850 era o escurecimento da pele pelo sol, luxuosa seria a tez “transparente”, tão recorrente na literatura ultrarromântica de autores como Álvares de Azevedo. Quando a palidez se torna mundana, fruto do ambiente industrial, passa a ser desejável a pele bronzeada, curtida ao sol durante todas as estações. A diferenciação é o elemento chave.



Jean-Auguste-Dominique Ingres, A Grande Odalisca, 1814.
Jean-Auguste-Dominique Ingres, A Grande Odalisca, 1814.


Apesar de objetos e comportamentos impráticos que evidenciam um poder aquisitivo elevado, o corpo continua sendo a principal prova material de uma vida de privilégios. Vivemos um período de consumo de aparências: não há, necessariamente, importância em possuir o grande produto do momento, desde que se consiga sinalizar — ainda que por aproximação — o repertório estético que ele evoca. Para ilustrar, se há uma tendência de um blush específico que domina as redes, não preciso possuir exatamente aquele item exclusivo; basta uma cor semelhante para anunciar ao mundo o desejo de participar desse imaginário. O consumo é, cada vez mais, uma performance do saber.


Mas quando todo artigo de luxo possui uma cópia, toda fragrância tem sua versão mais barata e toda aparência pode ser replicada com algum esforço, uma dúvida persiste: se o luxo já não diferencia o consumidor comum do milionário — ao menos nas imagens filtradas das redes sociais —, para onde se desloca, então, o estatuto do luxo e da exclusividade?


Nos últimos anos, parece haver uma resposta silenciosa surgindo nas passarelas: se tudo aquilo que é humano pode ser copiado ou reencenado, o luxo passa a buscar corpos que já não pareçam inteiramente humanos. Modelos cada vez mais longilíneos, magros ao limite da anatomia, rostos afiados como lâminas e peles sem textura compõem uma figura quase extraterrestre — algo entre o hiper-humano e o pós-biológico. Sem relevo, sem fluidos, sem pelos. Eles não apenas vestem o luxo: são, eles mesmos, sua última fronteira. Uma raridade que não pode ser reproduzida por filtros, tutoriais ou “dupes” (cópias baratas, produto similar mais acessível). O corpo torna-se, novamente, a mercadoria mais exclusiva.



Modelo americana nascida no Egito, Anok Yai é a capa da campanha “Alien”, da Mugler
Modelo americana nascida no Egito, Anok Yai é a capa da campanha “Alien”, da Mugler


A ascensão de um mercado cada vez menos velado de cirurgias plásticas e procedimentos estéticos é um testemunho dessa necessidade de não apenas consumir o luxo, mas de deixá-lo habitar o corpo. Os tablóides comentam incessantemente a imagem de celebridades — principalmente mulheres — analisando cada detalhe: formato dos lábios, especulações sobre bichectomias, a tensão da barriga diante de uma suspeita de lipo. O interesse, que antes se concentrava possivelmente nos relacionamentos ou nas compras extravagantes, hoje se volta para faces, corpos e o véu de mistério que envolve a possibilidade de modificações cirúrgicas. Comparações de antes e depois ou a frustração ao perceber que uma pessoa famosa realmente envelheceu nos últimos trinta anos são debatidas abertamente, sobretudo na internet, como se fossem a prova mais trágica de nossa vulnerabilidade. Afinal, apesar de produtos milagrosos, tratamentos rejuvenescedores ou procedimentos que prometem reverter o tempo, permanecemos, ainda, humanos.


A função do modelo e sua constante mudança também são sinalizadores dessa nova polaridade na experiência do luxo. Se ao início modelos cumpriam o papel de, ao vestirem roupas e acessórios, instigarem no consumidor uma catarse - “eu poderia vestir isso” -, hoje não podem, nem eles mesmos, sustentar os ideais de beleza e estilo de vida que encenam nas campanhas publicitárias que bombardeiam nossos meios de comunicação e trajetos urbanos.


O tempo todo somos lembrados de que nos falta uma característica para que sejamos belos, o tempo todo cultivam nos consumidores o medo de serem ordinários, de não aparentarem acessar o exclusivo. Nos é afirmado constantemente a farsa de que esses sentimentos de insatisfação são exclusivos, similarmente a um produto de luxo. Pode-se argumentar, inversamente, que esse é um contra-luxo: um sentimento de massas que se faz convencer de ser único. Quando uma bolsa da Birkin pode ser perfeitamente copiada por um complexo industrial e uma tonalidade de batom de grife perfeitamente reproduzida por uma marca de maquiagens de farmácia, é o corpo humano que torna-se, cada vez mais, a tela em branco para a reprodução do luxo. Ao passo que o objeto de tratamento de luxo é o corpo humano, e não mais os produtos que somos capazes, ou em maioria incapazes, de consumir, nos são plantadas inseguranças, infelizmente, muito rentáveis.


Talvez, uma forma de escapar da tirania silenciosa das medidas, das curvas e da perfeição seja reivindicar a dimensão lúdica e fantástica da moda. Ao reconhecer que corpos alongados, proporções exageradas, cores impossíveis e cenários irreais são, antes de tudo, construções imaginárias, somos convidados a participar de uma experiência estética sem a necessidade de medir nosso próprio valor por elas. Quando assumimos que há um elemento de fantasia explícito, algo deliberadamente exagerado e performático, fica mais clara a linha que separa o que é produto do luxo — o objeto, a criação, a obra de imaginação — do que somos nós, consumidores. A frustração, a comparação e a insegurança deixam de ser o motor do consumo; em seu lugar surge uma possibilidade mais generosa: podemos nos aproximar da moda como um espaço de exploração, de encantamento, de prazer estético. Somos atraídos pelo diferente, pelo instigante, não porque precisamos nos corrigir ou nos elevar, mas porque podemos nos maravilhar, brincar, experimentar, sem jamais perder a consciência da rugosidade e relevos que necessariamente fazem parte do corpo humano. E talvez, nesse gesto de distanciamento consciente, resida uma liberdade sublime— um espaço onde a fantasia não oprime, mas convoca; onde o luxo permanece inalcançável e fascinante, mas sem nos devorar.



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