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Modernidade Líquida e o Espetáculo do Conforto

  • Comunicação e Marketing
  • 4 de dez.
  • 5 min de leitura

Por: Bruno Zicman


Imagine por um instante a figura da dona de casa dos anos 1950. Deixe-se formar em sua mente essa iconografia. Moldada por um vislumbre hollywoodiano, é muito provável que a imagem seja a da mulher que, mesmo dentro de casa, mantém o cabelo feito, o vestido passado e volumoso por baixo de um avental. Além da maquiagem, calça também um salto alto para andar pelos cômodos da própria residência. Tragicamente perfeita. É provável também que, nessa imagem, ela esteja sozinha: filhos na escola, marido no trabalho. Ainda assim, passando a maior parte do dia em tarefas domésticas solitárias, sua cintura é afunilada, as unhas impecáveis e as pernas enfuscadas por uma meia-calça de nylon.


Essa representação da feminilidade doméstica dos anos 1950, mesmo que exista fundamentalmente apenas no imaginário construído por inúmeras propagandas, ainda nos atravessa a mente. Faz-nos crer que, em determinado momento histórico, houve um nível extremo de expectativa e cobrança pelas aparências dentro do espaço privado. As roupas, ocupando um papel de armadura moral, tornam mais brilhante essa vitrine da domesticidade como espetáculo. Hoje, porém, parece haver cada vez menos sentido em arrumar-se dentro de casa. Determinou-se desde então, de forma clara, o que são as “roupas de sair” e as “roupas de ficar em casa”. Eu mesmo tenho as minhas.



Imagem promocional de fogão na revista da marca GE (General Electric), 1954
Imagem promocional de fogão na revista da marca GE (General Electric), 1954


Quando se pensa, por exemplo, no ambiente em que vive essa idealizada dona de casa, é imprescindível reconhecer que ela e sua família estão cercados por instituições, formais ou conceituais, muito sólidas. A família, por exemplo, é uma instituição de núcleo construída sobre ideais levados a sério. O trabalho é a força que rege a vida e é responsável por grande parte da sensação de completude e satisfação do trabalhador digno. A sexualidade é, para o público geral, uma simples imagem em preto e branco: homens com mulheres. O gênero, da mesma forma: homens e mulheres.


Com a ascensão da televisão e da propaganda escancarada, essas normas se reforçam ainda mais: o que é designado para cada gênero, o que é próprio e impróprio, o que é moderno e tecnológico. Para essa família, acredita-se estar acontecendo um milagre econômico pós- Segunda Guerra Mundial: casa própria, carro, eletrodomésticos, brinquedos e uma televisão entre dois sofás de tecidos de fácil higienização. Cercada por múltiplas experiências vividas como verdades concretas — família, trabalho, religião —, a mãe dessa fictícia família veste, mesmo dentro do lar, um vestido justo ao corpo e sapatos desconfortáveis: uma demonstração de disciplina, dever e pertencimento a um mundo de certezas.


Voltando ao nosso tempo, o cenário parece uma polaridade inversa: a família, como estrutura rígida, não possui mais a mesma força. A ideia de passar a vida toda dedicando-se a uma empresa, antes aspiracional, tornou-se agora angustiante. Expandiu-se a compreensão sobre sexualidades múltiplas, muito além da dicotomia tradicional, e cada vez mais somos expostos a propagandas que, em vez de esconder suas intenções, escancaram-nas de forma parasitária. O jovem adulto não apenas deixa de se apoiar em verdades absolutas, como também parece não querer mais fazê-lo. Mas como isso se expressa na forma como nos apresentamos ao mundo? Como nos vestimos?


Se anteriormente o jogo de aparências existia no contato entre vizinhos, em manter uma boa imagem para aqueles no círculo de convívio próximo, hoje ele se sustenta — pela ascensão das redes sociais — no contato com o mundo inteiro. Somos estimulados a publicar nossas melhores versões: constantemente felizes, satisfeitos, saudáveis e atraentes — além de famintos por dopamina. Nesse contexto, a dicotomia do vestuário redefine-se: não mais “roupas de ficar em casa” e “roupas de sair”, mas “roupas para serem vistas” e “roupas para serem escondidas”.


Pensando nessas estruturas que, com o tempo, se diluem — as certezas sobre o percurso da vida, antes tão monumentais, que hoje parecem feitas de farinha —, é necessário recorrer ao conceito de modernidade líquida, introduzido pelo filósofo polonês Zygmunt Bauman. Trata-se de uma sociedade que, ao abandonar estruturas fixas e estáveis, liquefaz-se. Ao fazê-lo, torna mais rarefeitos os vínculos entre as pessoas, aumenta a sensação contínua de desamparo e reduz a possibilidade de sentir que a vida é preenchida por estabilidade. Uma sociedade que experiencia a modernidade líquida é, por um lado, menos enganada por ilusões simplórias de estabilidade; ao mesmo tempo, é, em geral, um tanto desencantada.


Em comparação com a figura da dona de casa hollywoodiana, hoje reconhece-se que as fronteiras entre o que se veste no ambiente público e privado, entre roupas para performar conforto ou domesticidade, transbordam e se misturam. O que antes era rígido e muito bem estabelecido agora se torna maleável, e o espetáculo do vestuário se desloca para um espaço líquido que pode ser também representado pelas roupas de conforto e lazer.


A competição e comparação agora é outra: se a dona de casa perfeita dos anos 1950 era como um robô de tarefas domésticas, hoje ganha a corrida aquele que aparenta exalar maior tranquilidade e despreocupação. Ao sermos bombardeados por notícias trágicas o tempo todo, sermos cobrados de estamos atualizado com tudo que acontece na vida pessoal das pessoas que nos cercam e, além disso, nos sentirmos constantemente assistidos por nossos celulares ou computadores, que escutam nossas conversas e nos sugerem anúncios condizentes, sobrenatural é a pessoa que aparenta passar por tudo isso inalterada.


Tendo isso em mente, o moletom não é mais uma peça de roupa reservada para uma noite de sono, e a malha que o compõe não é mais exclusiva para pijamas de inverno. Ocupa todos os ambientes, seja o de trabalho ou vida social, de forma flexível. Ganha inclusive versões “luxuosas”, inacessíveis, vendidas com etiquetas de grifes europeias e vendidas por milhares de dólares. Tornou-se possível esbanjar com o conforto.



Moletom 100% algodão vendido pela Gucci. Encontrado a venda na internet por R$13.489
Moletom 100% algodão vendido pela Gucci. Encontrado a venda na internet por R$13.489


Os crocs, inicialmente direcionados ao conforto e resistência contra água para o velejo, hoje ocupa os espaços urbanos e em variações luxuosas com marcas como Balenciaga, que produz hoje, entre múltiplas variações, os “pump crocs”, que possuem salto alto e custam aproximadamente R$5.500. Uma verdadeira amálgama do ambiente público e doméstico. Uma ambiguidade disfuncional que, além de um um preço exorbitante, não aparenta ser muito agradável. Parece mesmo estar tirando sarro de quem o compra!



Balenciaga e Crocs fazem parceria com o “Croc Madame”, encontrado a venda na internet por R$6.307,54
Balenciaga e Crocs fazem parceria com o “Croc Madame”, encontrado a venda na internet por R$6.307,54


O conforto e as roupas tradicionalmente voltadas ao lazer ou mesmo exercício ocupam hoje um palco de performatividade tão intenso quanto os saltos altos no carpete da sala. Num período de desilusão e desesperança, talvez busquemos como consumidores alguma fonte de conforto para consolar o fato de que nossa geração de jovens não apenas desconfia do período em que vive, mas se vê terminalmente descrente no futuro. Há uma tendência em buscarmos aparentar inalterados as inconveniências que nos cercam: saias apertadas dentro da casa, moletom e crocs que juntos custam o mesmo que um apartamento. É importante buscarmos na forma como nos vestimos a construção de um sentido legítimo. Pensar em, ao invés de negligenciar a realidade ao nosso redor, sermos visivelmente alterados por ela. Ainda tenho minhas “roupas de ficar em casa”, mesmo que a casa seja também invadida por um desejo de publicar nas redes sociais, minhas “roupas de sair” e mesmo minhas “roupas de esconder”. Mas ao vestí-las, me pergunto se sou honesto em minha escolha de me apresentar no mundo – ou se apenas desempenho mais um papel num espetáculo que protagoniza o conforto e conformação como as sensações mais desejadas e mais difíceis de atingir.


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